24 de dez. de 2018

Crônica Natalina



Essa obsessão por comemorar natal dia 24 e dia 25 me confunde. Natal é dia 25, catzo! Réveillon que tem essa coisa de 31 e 1º, ambos coexistem como uma única coisa, dias em que você tem desculpa para começar a beber assim que amanhece. No dia 31 se despedindo de toda a desgraceira do ano anterior, no  1º, para afogar toda o medo da desgraceira que vem pela frente.

Mas, o Natal não. Comemora-se o nascimento de Cristo  dia 25! Ninguém comemora aniversário a partir do dia anterior. Ok, tem gente que comemora, mas nem vou considerar.

Mas, então, a fatídica ceia da virada trás a família dividida entre os exaustos,  que.passaram o dia inteiro com a barriga encostada no fogão, fazendo comida para um batalhão e os famintos, os cretinos que pararam de comer às 9 da manhã para guardar a barriga pro peru do Ramiro. Por que o Ramiro, gente, o Ramiro faz um peru divino!

A ceia da madrugada tem todo um quê emocional.

Depois da oração da prima Teteia, onde cada grão de arroz é agraciado pela bênção divina, a turba se empanturra e depois se espalham pelos cômodos, as crianças atazanando os.cachorros, os aborrecentes postando selfies com dizeres de infelicidade. Os adultos compartilham lembranças, manuseando fotos antigas com dedos lambuzados de calda de pudim de leite.

Se ai, nesse momento se encerrasse o ato, a vida familiar seguiria na confortável hipocrisia de todos os dias. Mas, tem o efetivo dia do Natal. E é ai que o tudo desanda.

Entre as 10h da manhã, quando todos acordam, por bem ou pelo tilintar dos garfos e copos colocados à mesa pelos anfitriões insones e as 14h, onde começam a servir o almoço, os ressentimentos fermentam e se apuram, hidratados por cervejas mornas e vinhos azedos.
A verdade é que às 14h ninguém mais suporta o filho da Doralice, moleque birrento que chora de cinco em cinco minutos, quando não está batendo nas crianças menores.
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Ninguém suporta mais a Doralice, loira, magra e que passa o tempo todo discorrendo sobre como o pentelho do filho é inteligente e ganhou prêmio de soletração do colégio. Principalmente porquê ela manda o moleque soletrar inconstitucionalissimamente toda vez!

Há o revirar de olhos também para a Lidinha, terceira esposa do primo Zeca, que faz cara de nojo para tudo que é oferecido e só come a comida de passarinho que trouxe em mais de uma dúzia de potinhos de vidro,  porquê só come comida orgânica, é vegana e insiste em ensinar ao Caique, uma receita de danoninho natural feito com queijo caseiro e morangos cultivados na Serra, no sétimo dia do solstício de inverno por irmãs carmelitas que fizeram voto de silêncio. Sob os olhares raivosos de Renata, esposa de Caique, que em vingança, abre um pacote de salgadinhos carregado de sódio e gordura monossaturada e dá escondida para o filho mais novo de Lidinha.

Quando todos sentam à mesa há um rancor não contido em cada um dos presentes, a maioria já trocando as pernas. A tensão, como uma fina película, cujo menor movimento vai romper. Os olhares se cruzam junto às travessas fumegantes.

O conflito é eminente, por isso pouco falam, o bater dos talheres  é o som ambiente, ninguém quer ser a gota que vai transbordar o copo. Só querem comer, encerrar aquilo e voltar no ano seguinte.

E é nesse clima que João, o filho pentelho de Doralice, exclama, com a boca cheia de farofa:
-  Olha, mãe, o Neco me ensinou a soletrar terraplanista - t-e-r-r-a...

Um silêncio profundo invade a sala.  Quebrado pelo resmungar alto de Agenor, pai de João e esposo de uma estupefata Doralice:

 -Tinha que ser o Neco a ensinar essa merda! É isso que está aprendendo no seu colégio caro e de renome internacional? Que a terra é plana?

Andrade suspende a garfada no ar e aponta ameaçadoramente a coxa de peru em direção a Agenor.

- Melhor aprender isso que ser doutrinado por aqueles comunistas de merda do tal coleginho federal que seu filho estuda!

Um burburinho começa na mesa. Frases soltas ditas com a cabeça baixa, quase como se falassem para si mesma. Mas, uma se sobrepõe as outras.

- Pelo menos a filha não é sapatão... - murmura indignada Carminha, mãe da Silvia, adolescente com fone de ouvido completamente alheia a todos ali.

- E quem tem filha sapatão aqui? - a prima Teteia veste a carapuça.

- Ah, vai dizer que você não sabe sobre a Carol? Todo mundo sabe que sua filhinha cola velcro! - 
Andrade se mete, ainda sacudindo a coxa.

Os olhares  se dirigem à Carol. A morena, que lutava para pegar um pedaço do peito de peru, levanta-se, ainda com a faca de destrinchar peru na mão. Os parentes próximos se afastam disfarçadamente.

- O senhor descobriu isso quando, tio Andrade? No dia em que fingiu não me ver lá naquele prédio na Barata Ribeiro em que subiu com a prostituta ou quando tentou cantar minha namorada e ela mandou o senhor se fuder?

- Prostituta? Barata Ribeiro? - Vera, esposa do Andrade, indaga, chocada ao marido.  

O burburinho agora já não é mais baixo. Todos falam ao mesmo tempo, de um lado a outro da mesa revelações são desencavadas e ofensas são trocadas.
- Seu petralha, defensor do kit gay!
- Fascista, filha da puta opressor!
- Pelo menos não tenho bandido de estimação!
- E a laranjada, ta boa?
- Vai pra Cuba!
- Lambe-botas de milico!

Os ânimos se exaltam e as ofensas proliferam. Ninguém percebe a matriarca Zuleide, catando todo o bacon da farofa e colocando em um prato.  

Desde que a médica a proibira de comer bacon, todos da família faziam vigilância severa. Tinha anos que ela não comia a gordurosa iguaria.

João senta-se ao lado da avó, assistindo a hecatombe familiar.
- Vó, foi a senhora que me ensinou soletrar terraplanista, por que me mandou dizer que foi o Neco?

- Cala a boca, menino e come um pedaço de bacon! - A matriarca responde. Enfiando um pedaço da carne suculenta e  dourada na boca da criança.

17 de set. de 2018

Insônia

Noite Estrelada - Van Gogh

É madrugada e não durmo.Giro e reviro.Remoendo frases, fatos, acasos.
A mente fervilha.Tempestades. Acizentados pensamentos
Relampejam medos.Chovem impossibilidades.Inundam certezas.
A insônia  consome.
O corpo pede repouso, mas a alma se agita.
A tempestade que irrompe, amanhece. É força da natureza.
E nem mesmo a mente se atreve, por mais que o corpo padeça,
interromper o vendaval que me consome.

3 de set. de 2018

Encontro

Aprume o corpo. Se ajeite. Bote um batom na boca. Uma roupa que ame. Um sapato confortável, Se enfeite. Que hoje você tem um encontro. Aceite.

Esquece a outra que espreita. Silencie à que grita. Enrole as culpas em plástico bolha. Aperte, estoure. Divirta-se.

Encare o medo que habita. Enfrente. Diga que hoje vai ser diferente. Que assim seja. E seja. Seja você a que manda. Assume. Se ame, se toque. Embriague-se em seu perfume.

Hoje você tem um encontro. Consigo. Comigo. Com a dona dos olhos vermelhos no espelho. Com as rugas, as rusgas. Com os fios pratas do cabelo. Com o tempo.

Se ergue que a vida só segue.

Sossegue. Sossegue no peito o cansaço, Abrace. Seque as lágrimas que insistem,

Desiste, Do murro em ponta de faca. Do muro que nunca se acaba. Do abismo, com o qual sempre flerta. 

Se abra. Para o mundo e tudo que há nele. Navegue. Levante as velas e siga. Deixe que os ventos conduzam seus passos. Se enlace com tudo que ri.

Desenlace da tristeza. Hoje você tem um encontro. Com a vida, Consigo, Comigo.
E com todas nós que habitamos em ti.

30 de ago. de 2018

Mentiras


Finge calmarias que não sente. Resignações que não possui. Ouve frases que machucam com um plácido sorriso no rosto. Implora perdões por erros que não cometeu. Ingere mágoas e tranqüilizantes que permitem um sono sem sonhos, sem planos, sem ausências, que ela finge não sentir.

Fala frases que não acredita e ri, gargalhada triste, enquanto engole o nó que não se desfaz em sua garganta. Oculta na face serena dores intangíveis e se obriga ao riso amargo da ironia, enquanto se veste de forte.

Chora sozinha sentada no frio piso do banheiro, deixando que a água que cai, misture-se as suas águas internas.

27 de ago. de 2018

Cotidiano


A voz da amiga distante que liga de surpresa. A pausa para o café. O Bem-te-vi que passeia por sua janela. O beijo espontâneo do filho. O elogio ao feijão com arroz de todos os dias. O bom dia da moça da padaria. O gato que se enrosca nas pernas. A mão que segura a sua. As gargalhadas durante uma conversa. O friozinho que refresca. O amor que transborda em uma postagem boba sobre acidentes domésticos. As palavras que fluem compondo lirismo no papel. O projeto que dá certo. Os cinco minutos a mais na cama. O filme bobo que faz rir. A vida que se desdobra em dias após o outro e no entanto, tão repletos de diferenças. A tristeza que aperta. A saudade do que nunca foi. O medo que aprisiona. A vontade que liberta. A montanha-russa em seu looping. As lágrimas que queimam. As notícias que assustam. O carinho que transforma e transporta tudo que oprime para uma outra dimensão. O sim. O não. O verbo que falta. As pessoas que se misturam. E os passos que continuam. Pé depois do outro na estrada escolhida. Mesmo quando não foi.

23 de ago. de 2018

Incompatibilidade

Quando soube que caçava borboletas, terminei. Impossível entregar o coração a alguém que podava asas.

21 de ago. de 2018

Cores



No cabelo, a cor era vermelho. A boca exibia um tom lilás, nas unhas reinava o azul turquesa. Em um mundo tão concreto, ela irradiava cores por onde passava.


17 de ago. de 2018

Ausências

"Falta de vontade, falta de juízo, falta de costumes, falta de afeto, falta de amores, falta de tesão, falta de sexo, falta de conversas, falta de cumplicidade... 
No final, tudo se resume a ausências". 
[Patricia Daltro]

15 de ago. de 2018

Saudades

[Patricia Daltro]
O conto "Saudades" faz parte do livro 
"A Vida Sem Manual"
Vendas através do e-mail: 

13 de ago. de 2018

Fragmentos

Eu que já me quebrei tantas vezes, ando aprendendo a me esfacelar. 

Virar um pó muito fino, que não fira ninguém ao meu redor. No máximo, uma poeira, a qual rodopie às notas do vento. 

E, se ainda assim, minhas partes chegarem a você, que seja como um cisco suave, que saia dos olhos, após um sopro delicado ou escorra suavemente através de uma lágrima.

9 de ago. de 2018

A Arte de Dormir Em Uma Cama Inflável

Conto integrante do livro "A Versão da Madrasta"

Toda sua crença na humanidade e no poder infinito da sua mente caem por terra, quando sua sexta cama inflável fura. Principalmente se é inverno e você acorda com o gelo polar do chão subindo por suas costas toda noite, quando ela desinfla.

Por que, como o furo é pequeno demais para achá-lo e tampá-lo, e grande demais para ir perdendo ar após a cama ser inflada, metade da noite ainda temos uma pseudo cama para chamar de nossa, a outra metade é se revirando no chão duro, buscando uma melhor posição.

Contar como fomos parar numa cama inflável digna de acampamentos de verão, é longa e meio tediosa, resta saber que a cama foi o último dos móveis a abandonar o navio. O primeiro foi a mesa, que quebrou no inicio da maior das crises, um pouco antes do desemprego do marido, talvez pressentindo os dias que viriam.

Como um motim, moveis e eletrodomésticos foram se quebrando um a um, sobrando apenas o básico para sobrevivência. E, a cama, que nos abandonou num estalar continuo, até não conseguir manter-se mais na sua função maior, que é a de permitir uma noite de sono tranquila.

Constatado que não haveria mais cama, surgiu a dúvida: o que fazer? Quando o dinheiro não dá para comprar cama nova, sequer um colchão de quinta, resta a opção, colchonetes ou cama inflável? O preço definiu a escolha e foi assim, que começou toda uma dinastia de camas infláveis em nossa casa.

Dormir numa cama inflável é uma arte. Primeiro é preciso liberar todo o seu lado infantil - a sensação é quase a mesma de brincar de pula-pula.

Segundo: uma parceria com seu companheiro é fundamental, afinal, um outro brinquedo bastante similar a uma cama inflável é uma gangorra. Se um lado desce, o outro sobe e se o lado que descer foi mais abrupto, o lado que sobe pode acabar no chão, numa cena digna da maior das videos-cacetadas.

Terceiro, e não menos importante, mantenha crianças e/ou animais distantes da mesma, por que por mais que a propaganda mostre um trator passando por cima da cama e um prego sendo empurrado e ela lá, impávida e colossal - isto não é verdade, ela fura com um arrastar da sua unha mal-cortada do dedão do pé. Ou com uma vareta de plástico sendo espetada nela...

O melhor de dormir numa cama inflável é transar nela (nela, e não com ela, faz favor, uma cama inflável, não é uma boneca inflável!). Sério, se nunca experimentou e anda a fim de dar uma incrementada na sua vida sexual, experimente. Não importa a posição: papai e mamãe ou canguru perneta, a flexibilidade da cama te transforma numa ginasta, e o resultado final, hummm, só experimentando para saber. Se fosse da empresa de marketing do produto, nada de tratores ou pregos.

Na propaganda, mostraria um casal exercitando o KamaSutra - tenho certeza de que venderia muito mais, do que mostrar um casal lendo, enquanto flutuam numa piscina - pensando bem, a cama flutuando numa piscina, enquanto um casal manda ver, seria bem interessante também.

O pior dela, sem dúvida, é o acordar. E se ela furar e você acordar com os pulmões recebendo o ar gelado do chão, é pior ainda. E, acordar numa cama inflável furada, faz invariavelmente, você avaliar sua vida.

Na verdade, ao abrir os olhos, o primeiro pensamento é: - Putz, que merda andei fazendo da minha vida? - similar ao acordar após um porre-de-vinho-sangue-de-boi. Toda sua vida passa diante dos seus olhos, todas as suas escolhas erradas... A diferença é que se todos esses pensamentos surgiram oriundos de uma noite mal dormida numa cama inflável, você apenas respira fundo e levanta para encarar o dia. Se for fruto do vinho vagabundo, levantar e seguir em frente, é impossível, pelo menos nos próximos três dias.

6 de ago. de 2018

Amém!


Toda vez que tenho que ir ao Centro, pego o 355 e essa viagem de 1h e 30m rende histórias interessantes. 
Sou dessas que ando de antena ligada nos papos que rolam a minha volta, minha veia escritora se atiça, toda vez que um causo interessante se aproxima.

Terça agora foi dia de sacolejar o esqueleto no busum. Dá uns 30 minutos e entrou um pastor. Distribuiu uns santinhos e começou a pregar a palavra. Confesso que desliguei. Mas, eis que ele termina o que quer que tenha dito, com um amém. O ônibus: cri cri cri.

Ele repetiu o amém mais alto. Cri cri cri. Dai, ele ficou puto. JESUS QUER O SEU AMÉM! REPITAM AMÉM! Um amém constrangido surgiu no fundo da condução. Não satisfez o homem: É O DIABO QUE NÃO DEIXA VOCÊS DIZEREM AMÉM! LARGA O DIABO E VEM PRA JESUS! TODO MUNDO COMIGO:AMÉM! 

Ele gritava e sacudia a Bíblia. Comecei a achar que iria arrancar o amém batendo na gente com o livro sagrado. 
O trocador camarada mandou descer que não queria confusão no ônibus dele.

Meia hora de calmaria, entra o camelo sincerão: Biscoito champanhe por dois real! Não é roubo não, minha gente. O caminhão tombou perto de casa e a gente precisa trabalhar! Só consegui pegar essa caixa, bora ser camarada com o amigo aqui que tem dois filhos, esposa, sogra e cunhada para cuidar. 
(Começo a rir por dentro, mas com respeito). Dai atrás de mim duas donas começam a conversar: 
- Adoro esse biscoito, mas não posso comprar.
- Por que, doida?
- Ah, já fiz muita merda na vida, tô tentando me acertar.
(Nessa hora, ouvido tá antenadissimo, o que tem o biscoito com as tretas da cidadã?)
- Eu roubei muito, sabe. Não posso ficar ajudando no roubo dos outros.
(E eu mentalmente: - Agora tá na hora de dizer Amém! Cadê o pastor?)
[Patricia Daltro]

3 de ago. de 2018

A Freira

A Freira
Era o terceiro caso no mês. Pensou o detetive. Homens com a genitália mutilada. Em comum, histórico de violência doméstica e abusos sexuais.
No convento, a freira lavava o hábito sujo de sangue.
- Uma santa! - diziam sobre ela. Que apenas sorria, discreta e docilmente como fora ensinada a sorrir .
[Patricia Daltro]

1 de ago. de 2018

Contos do Poente - resenha


Amo descobrir escritores novos. Os clássicos são maravilhosos, mas muitas vezes cometemos o erro de ficar presos neles e não darmos espaço para uma turma nova que está ai, criando literatura de qualidade, tão boa quanto, ou até mesmo melhor do que seus predecessores.
Com essa introdução quero falar que delicia descobrir as escritoras Luciana Nepomuceno e Rita Paschoalin.
O livro Contos do Poente delas é arrebatador.
As histórias ali contadas, envolvem, instigam e dão vontade de mais, muito mais.
São construídas e desconstruídas através de uma linguagem fluída que nos convida a fazer parte.
Como não se emocionar com o conto A Festa de Rita, ou não se perder no conto Esquecimento de Luciana? Impossível. As narrativas se desenrolam gostosamente perante nossos olhos e tornam-se vívidas através das ilustrações de Joana Faria.
Contos do Poente é um livro para ser devorado, não avidamente, mas saboreando cada uma das palavras desnudadas pela escrita delas.

Para comprar o livro: 
E-mail:  contosdopoente@gmail.com 
Para mais:
Luciana Nepomuceno: Borboletas nos Olhos
Rita Paschoalin: Estrada Anil
Joana Faria: Joana Faria

31 de jul. de 2018

Dialogando com Virginia Woolf


Cara Virginia Woolf, acabo de ler seu artigo “Profissões para Mulheres”, excelente por sinal, no qual aponta um assassinato como condição para que nós mulheres possamos escrever de maneira plena. Sem dúvida o fato de matar inúmeras vezes o seu contemporâneo Anjo do Lar, pode nos  agraciar com sua literatura magnifica. 
Mas você não sabe a armadilha que caímos no decorrer desse século que nos separa. Se antes, a figura pura que sussurrava em seus ouvidos que deveria usar a pena de maneira meiga e cheia de artimanhas femininas atrapalhava sua criação, obrigando-lhe a matá-la, não uma, mais inúmeras vezes. Hoje nos deparamos com vozes diversas que ecoam em nossos ouvidos todas as vezes em que nos sentamos para exercer a arte da escrita. 
Ora é o anjo da profissional competente que nos adverte que não há tempo para tamanha frivolidade. Ora é o anjo da dona de casa exemplar que nos apresenta louça e roupas sujas e a comida sobre o balcão para cozinhar. Ora, e este é o anjo mais sádico, o da mãe perfeita que nos cobra criação, educação, alimentação e diversão para nossas crianças. 
Pobre Virginia, o anjo que um dia você matou, era apenas uma das facetas de entidade maior e mais perigosa a nossa condição, não só de escritora, mas de mulher: o machismo entranhado em nós, o qual reproduzimos ad infinitum
Ah, minha querida, precisamos ser assassinos seriais se desejamos um dia chegar ao seus pés. Em nossas mãos, o sangue desses três anjos opressores precisa correr. Há que se sufocar a profissional, afogar a dona de casa e enterrar em definitivo a mãe em nós para que possamos exercer nossa escrita de maneira plena. 
[Patricia Daltro]