Na vida sempre temos várias opções. Até nas tragédias/dramas pessoais. Uma delas é ficarmos calados. Meio esperando que tudo que aconteceu vá embora, vire lembranças que não buscaremos e que, na maioria das vezes, nos acordará algumas noites em forma de pesadelos terríveis, que nós farão suar e gritar. E ficar andando pela casa, sem conseguir dormir.
Não que falar resolva, mas ajuda. A gente e a outras pessoas que possam, um dia, se depararem com situações similares.
Não, eu não costumo falar da minha vida pessoal no blog. Nem no meu antigo e nesse, até ensaiei algumas vezes, mas normalmente, prefiro escrever sobre personagens, que possam ter ou não haver comigo. Mas, como eu disse, as vezes, é preciso falar.
Tem tempos que freqüento o blog da Lola (Escreva, Lola, Escreva) é ali tem se debatido bastante a questão da violência contra a mulher – em todos os seus tipos. Mas, teve um post dela que me fez ficar entalada. O qual ela intitulou de A Minha Mais Terrível História de Horror. Ali, descobri que todos nós temos histórias de horror para contar, e o pior, que eu tinha muitas! Sabe, essa coisa de deixar para trás e seguir fingindo que não foi com você? Eu fiz tantas vezes isso sem nem perceber. Mas, ao ler aquele post e os relatos que outras mulheres foram deixando nos comentários, percebi que meus horrores pessoais estavam todos bem acordados, só esperando o momento certo para me assombrar.
Meu primeiro contato com a violência sexual contra mulheres começou cedo. Não sei se por que tinha um aspecto meio andrógeno, ou por morar em uma região de baixa renda, fui quase vítima de predadores sexuais. Uma dessas vezes, minha primeira lembrança, deveria ter no máximo uns cinco anos e numa loja de departamentos, enquanto minha mãe falava com o vendedor, o sujeito chegou e puxou minha mão para dentro da sua calça, que estava aberta. Foi muito rápido, assustador e nojento. Graças aos céus, minha mãe viu e como uma leoa, defendeu sua cria, atacando o homem, que fugiu.
Numa outra ocasião, em um cinema, um pouco mais velha, oito anos, o sujeito sentou a meu lado e tentou passar a mão em mim. Novamente fui salva pela minha mãe, que bateu muito no sujeito!
O resultado desses episódios: uma mãe paranóica (com toda razão) e uma criança completamente retraída, que se recusava a falar com pessoas desconhecidas, principalmente do sexo oposto.
Quando eu tinha dez anos, a mulher do meu tio foi estuprada. Pelo dono da papelaria do lado de casa. Ela voltava do mercado por volta das seis da tarde, quando foi agarrada e jogada dentro de uma carro. Eram dez da noite quando chegou em casa. Ensangüentada, com as roupas rasgadas e humilhada de um jeito que, descobri naquela noite, ninguém merecia ser. O pior é que esse crime ficou por isso mesmo, não existiam delegacias de mulheres naquela época e o policial que investigou o caso, “justificou” o sujeito, dizendo que ele tinha tido um dia ruim!
Com doze anos, fui convidada para viajar com a família da minha melhor amiga. Excursão para uma cidade no interior. Minha mãe não queria deixar, foi depois de muita insistência que aceitou. Fui. Ao meu lado, no banco, um jovem de 22 anos. Fui acordada com um beijo. Poderia ser uma bela história de contos-de-fada, mas não foi. Claro, que no primeiro momento, fiquei toda besta, afinal, tinha doze anos e um homem de 22 se interessava por mim.
A coisa ficou esquisita quando as carícias começaram a ficar mais intimas! Eu me assustei. (Só para constar, eu ainda brincava de pique-esconde com meus primos!, ). Eu comecei a repelir, mas ele insistiu. E insistiu. E dizia, que ele sabia que eu queria aquilo tanto quanto ele. Que eu era uma vadiazinha! Todos no ônibus dormiam. Eu só queria gritar e pedir socorro, mas a voz não saia (durante anos, tive pesadelos com essa cena, e eu nunca consegui gritar). Ele só não terminou o “serviço”, por que eu, de algum jeito, consegui me desvencilhar e fugir para outro banco. Eu não conseguia chorar, nem contar para ninguém o acontecido, por que no fundo, achava que ele tinha razão, que fora eu que permitira tudo aquilo.
Ele continuou me perseguindo durante a viagem. Fiquei no quarto do hotel, fingindo uma doença qualquer.
O final-de-semana acabou. Eu tinha virado uma sombra. Assustada e chorosa. Mas, ele ainda não havia acabado. Infelizmente, ele descobriu onde eu estudava e passou a me esperar na porta do colégio. Foram duas semanas de terror, me escondendo na biblioteca, pedindo as irmãs para me deixarem ficar lá.
Um dia ele não estava mais lá, não fisicamente, mas eu continuei o vendo por todos os lados. A culpa, o medo, a soma dessa situação resultou num quadro depressivo tão forte que tentei suicídio. Salva por minha mãe, fui encaminhada à terapia, dez anos para me livrar de uma culpa que não me pertencia e entender que eu era a vítima.
Com quinze anos, eu não tinha minha sexualidade bem resolvida (muito fruto da história anterior), era virgem e estudava em um colégio de freiras extremamente repressor. - fui a uma festa na casa de um amigo, e lá me deram um copo de coca-cola, depois, como a festa estava chata, o namorado de uma amiga convidou, eu e essa amiga, mas um outro cara, que não conhecia, para darmos uma volta de carro.
Minha memória fica meio confusa nessa hora, mas lembro de começar a ver tudo dançar, as luzes ficando mais fortes e eu não tendo mais controle sobre minha voz e corpo.
Reconheci vagamente que estávamos indo para o Alto da Boa Vista (um lugar bem deserto).
Eu sabia que tinha algo errado, principalmente, por que o cara que estava ao meu lado, ficava tentando me acariciar, eu lutava com o resto das forças que tinha, mas não conseguia raciocinar, tentava avisar minha amiga, mas a voz saia enrolada...
Então o carro parou em um lugar deserto e minha amiga ia saindo com o namorado, me deixando só com o desconhecido, mas, talvez por que nosso grau de amizade gerasse quase uma telepatia entre a gente, ela parou e perguntou se eu estava bem.
Eu não consegui dizer nada, só grunhi alguma coisa, que ela entendeu como socorro.
Então, ela começou a gritar com o namorado, com o amigo do namorado e exigiu que levasse a gente para casa. Eu apaguei ai.
Acordei no hospital, descobrindo que tinham colocado ácido na minha coca-cola. Naquela noite, escapei de algo terrível, ou melhor, eu e minha amiga escapamos.
Um ano depois, vi essa amiga ser destruída. Estuprada com dezesseis anos pelo sócio da agência de modelos em que trabalhava. Na delegacia teve que descrever a roupa que vestia. Por que entrou no carro do seu chefe, fora do horário de trabalho e como foi para o motel com ele sem querer, (a parte em que ele tinha uma pistola encostada na sua cintura em todo processo, foi ignorada completamente pelos policias) – na época desse estupro, delegacia de mulheres ainda era luta a ser conquistada.
Minha amiga nunca superou esse episódio. O estuprador morava próximo a casa dela, e passava quase diariamente de carro, “pedindo” para retirar a acusação. Ela foi demitida da agência. Teve que se afastar do bairro onde morava há anos, por que não podia sair à rua sem esbarrar com seu algoz.
Éramos duas crianças, e amadurecemos nesse verão. Ela ficou na minha casa, até a coisa se acalmar. Isso é, quando o cidadão percebeu que ela iria até o fim do processo, ele fugiu. Simples assim. Ele foi embora, a policia não fez nada e ela ficou, parte do que um dia fora, sempre amedrontada, perdida. Passou a ser usuária de drogas, cada vez mais pesadas. Um dia, perguntei por que ela estava fazendo isso com ela mesma, e ela me disse que morrera naquele motel. Só queria que o corpo acompanhasse sua alma.
É isso que o estupro faz com a gente, mesmo quando ele não se concretiza no sentido total do ato. Nem sempre quem sofre essa violência, consegue voltar. Muitos ficam presos, vitimados por um medo que faz gelar a menção de um simples toque.
E tem as outras violências, não físicas, mas tão dolorosas quanto. Gritos, ameaças, humilhações, traições, tudo faz parte do pacote, mesmo quando não percebemos. Mas, a pior violência é ficar em silêncio. Por que ficar em silêncio fortalece o agressor e enfraquece a vitima. É preciso falar, denunciar, questionar...