Capitulo III
Ela vê o avião partir. Uma
sensação de solidão a invade. Fora bom ficar com Alex essas duas semanas.
Conversara com ele a respeito do pesadelo. De como estava se sentindo
assustada. O medo ressurgindo, ameaçando-lhe a sanidade, duramente conquistada.
Agora, ele ia embora. Não sabe porquê ficou. Melhor seria ter ido com ele.
Tanto que insistiu, pediu, implorou até... mas ela decidira ficar. Recomeçar.
Enfrentar seus medos mais profundos, o analista recomendara.
Quando o avião perde-se no
horizonte, ela resolve ir embora. Ainda quer passar em uma papelaria, vai
comprar tintas, telas... voltar a pintar. Os pesadelos agora são coisas do
passado, pensa. Acabou. E, se voltarem, saberá que são apenas pesadelos. E que
acabam, quando surge o dia. Mas, se nada der certo, ainda tem Alex, de braços
abertos, esperando por ela, em um outro país.
Enquanto dirige, ela lembra.
Agora não quer mais esquecer, é preciso lembrar para superar.
Chega em casa ao entardecer,
a luminosidade faz com que acenda dentro dela à vontade de pintar. Troca de
roupa e vai para o atelier. Por alguns minutos fita a tela branca, sem saber o
que fazer. E então, a idéia surge (ela sempre achara esse momento mágico) e
começa a traçar o desenho com carvão.
Horas depois, ainda continua
a riscar, quase compulsivamente a tela, aos poucos uma paisagem se destaca no
emaranhado de riscos que faz. Suas mãos estão dormentes, mas não consegue
parar. Uma vertigem prazerosa a impulsiona.
Por uns instantes, um piscar
de olhos e ela já não está mais no atelier. Encontra-se encostada em um muro,
na esquina de uma rua mal-iluminada. Sente um cheiro estranho no ar. Suas
narinas se excitam com a fragrância. Embora, esteja de noite e a rua esteja
escura, ela enxerga perfeitamente. Ouve passos. Passos de mulher. Fome... o
cheiro de sangue invade-lhe os sentidos. Apruma-se rente ao muro, e observa:
uma mulher caminha distraída na sua direção. Sente a adrenalina invadindo-lhe
os sentidos. É uma caçada. A presa se aproxima... puxa a mulher com um gesto
rápido, caindo sobre ela. O cheiro do medo deixa-lhe extasiada. Sua mão está
sobre a boca da mulher, a outra usa para imobilizá-la. Curva-se sobre a fêmea,
a saliva escorrendo das presas que crescem em sua boca. Delicadamente crava os
dentes na pele macia do pescoço da sua presa. Suga-a e um prazer supremo a
invade. Suas células se regojizam, seus sentidos apuram-se, sente-se quente e
forte.
Então vê seu reflexo na
pupila dilatada de sua vitima. O homem! O assassino de seus pais! Rola
desajeitadamente de cima da mulher. Está imóvel. De joelhos aproxima-se dela.
Uma palidez mórbida na sua face. Morta...
- Não! Não! Não!!!!
Acorda com seus próprios
gritos. Seu corpo coberto de suor. Corre para o banheiro vomitando. Depois se
encosta ao ladrilho frio, abraçando-se e então chora. Um choro desesperado e
aflito.
Voltar a fazer análise. A
única saída. Tem medo de dormir. Toma estimulantes diversos, caminha por horas
e horas pelas ruas, sempre que anoitece, com medo de voltar ao atelier. Por
isso, está ali agora, em um consultório, aguardando a hora da consulta.
Folheia uma revista
distraidamente, quando uma noticia salta aos seus olhos: é sobre uma mulher
encontrada morta. Assassinada. O mistério: nenhuma gota de sangue no corpo...
Madalena sente o coração apertar enquanto lê a noticia. Seu corpo tremendo de
pavor. Pega a bolsa e a revista e sai às pressas do consultório.
Enquanto dirige, seus olhos
buscam a matéria. Repete, exaustivamente, a possibilidade de uma coincidência.
Uma macabra coincidência. Foi apenas um sonho... apenas um pesadelo.
Chega ao atelier,
completamente desestruturada. Sentada no sofá, o olhar fixo na tela, onde uma
mulher luta contra uma fera que a ataca. A mulher... a mulher morta da revista
é a mulher da sua pintura. A mesma pessoa...
A noite chega, ouve o som da
rua lá embaixo: vozes, carros, música... a vida normal de pessoas normais. Por
que com ela não era assim? Lê novamente a matéria da revista. Tenta ver em que
dia a mulher morreu, mas não há datas... bebe um gole de whiskie no gargalo da
garrafa. A bebida desce quente por sua garganta, dando-lhe um pouco de alivio.
Bebe mais e mais... aos poucos, uma dormência gostosa invade seu corpo.
Está a espreita de novo, mas
agora sabe que não é ela. É como se estivesse no corpo de outra pessoa. Dele! O
homem de seus pesadelos. Vê a rua deserta, sente o cheiro da presa que se
aproxima... está dentro dele e não pode controlá-lo!
Sabe que ele vai matar de
novo. E que não é um pesadelo! Seu medo assume proporções imensas. Não é
real... não é real... mas a vítima agora está tão próxima. Quase ao alcance de
suas mãos (dele/dela?) O desespero invade Madalena. Pode senti-lo em sua
excitação. O prazer percorrendo seu corpo, antegozando o gosto de sangue. O
calor de uma vida se esvaindo. Ela está à beira da loucura agora.
Sua razão se indo, na mesma
proporção dos passos da vitima. Sem que possa evitar, ele cai sobre a presa, um
jovem vindo da escola talvez. Uma criança, cujos pais irão esperar e esperar a
sua volta, a qual nunca acontecerá.
Quando o sangue entra-lhe
pela boca. Madalena sente o prazer, não o seu, mas o do homem que a abriga.
Como um voyeur, ela o vê saciar-se. Está como hipnotizada. Não consegue se
livrar daquela visão. Sente-se tonta. Enjoada. Luta desenfreadamente para sair,
mas está aprisionada. Tão sugada, quanto o jovem que definha a sua frente.
Então o rapaz fica imóvel e
uma neblina cai sobre ela.
Quando volta a consciência,
está novamente em seu atelier. Um gosto metálico na boca. Um quadro inacabado
retrata o pesadelo que acabara de vivenciar. O relógio marca quatro horas da
manhã. Ela treme compulsivamente. Por alguns momentos, não sabe onde está e
embora reconheça todos os objetos do atelier, estes já não lhe oferecem nenhuma
sensação de realidade.
- É um pesadelo... apenas um pesadelo... a realidade é
diferente. Não existem pessoas que se alimentam de sangue... esse homem está preso... - recita frases diversas,
buscando encontrar um nexo qualquer, um vínculo com o mundo real.
Já faz muito tempo. Cinco
anos. Ela só tinha quinze anos, quando tudo aconteceu. Uma noite, uma tranqüila
noite de verão. Acordara com um som abafado, vindo da sala. Lembra-se de
caminhar até lá, da mãe caída, sangrando no chão e um homem desconhecido sobre
o pai... então não se lembra mais... não lembra mais... por quê? Por que, meu
Deus, por quê? Precisa lembrar. Se lembrar o pesadelo acaba. Precisa
lembrar-se!!!!
Lembre-se. – o policial
pedira – diga-me criança, o que você viu. Você precisa lembrar... o que
aconteceu?
O que aconteceu?... nunca
fora capaz de lembrar o que acontecera aquela noite. Só os pais estendidos no
chão. Mortos... e o assassino. O homem dos seus pesadelos.
Dorme no chão do atelier.
Anestesiada pelo cansaço.
A manhã a acorda com seus
sons. Sente o corpo moído pela noite mal dormida. Fragmentos do pesadelo
invadem sua mente perturbada. Sabe que precisa levantar, tomar um café, comprar
jornal. Uma rotina imposta que lhe ajudaria a evitar a invasão da loucura. Mas,
não consegue. Continua prostrada no chão. Angustiada demais para se mexer.
Lentamente obriga-se a levantar. Lágrimas escorrem do seu rosto enquanto
prepara o café. Está cansada. Muito cansada. Pensa pela primeira vez em voltar
para casa, para Alex.
Fora ele que cuidara dela
após a morte dos seus pais. Lembra-se dele tomando todas as providências, o
braço forte no enterro. Depois a viagem para os Estados Unidos. A mão amiga nas
noites de pesadelo. Sempre Alex... sentia tanta falta dele agora.
Mesmo quando ela decidira
voltar ao Brasil, ele compreendera. Pedira que não viesse, mas diante da sua
obstinação, não hesitara em acompanhá-la e ajudou a montar toda a
infra-estrutura da sua volta. E, recentemente, quando ela caíra doente, ele
viera em seu socorro. Se ela voltasse, talvez os pesadelos ficassem para trás.
Não... ela sabe que não.. o
pesadelo nunca acabaria. Não enquanto ela não fosse suficientemente forte para
olhar para trás e enterrar seus mortos.
Liga o rádio. Distrai-se
ouvindo músicas não muito agradáveis. Termina de tomar o café e decide tomar
banho.
Está no chuveiro quando ouve
a notícia: mais uma vítima do assassino misterioso. Um jovem de quatorze anos
fora encontrado morto. Aparentemente sem sangue... o assassinato acontecera
durante a madrugada.
Madalena desliga o chuveiro e
enrola-se a toalha. Senta-se na beira da privada, absorvendo o que ouvira. Seu
estomago revira e ela vomita descontroladamente.
Agora ela sabe... não era um pesadelo. Era
real... veste-se apressadamente e sai. Decidida a colocar um ponto final
naquilo.
Um comentário:
Patrícia,
Que dó da Madalena, e acho que por conta do crepúsculo não consigo ver o vampiro como alguém do mal ou feio, kkk.
Beijos
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