2 de set. de 2010

Quando as Fadas Surgem

Buquê de Tulipas da Bichos de Pano

Por Patricia Daltro

Elas vieram ontem. Pontos brilhantes em volta da velha laranjeira. No início achei que eram vaga-lumes. Tantos, que transformavam a árvore. Parecia natal.
Estava sozinha, mais uma briga com Roberto. E, não fui até elas. Fiquei olhando pela janela, a profusão de luzes coloridas cobrindo meu quintal.
Nesse dia, deixaram aos pés da laranjeira, uma cesta contendo o mais delicioso mel que já havia provado.
Pode ser só impressão, mas percebi nos olhos do meu tempestuoso marido, uma certa calmaria após servir para ele, no café da manhã, um pouco do mel na torrada.
***
Elas vieram novamente ontem. Dessa vez inundando de luz toda a minha varanda. Quis ir até elas, mas mal conseguia andar. A última briga com Roberto deixará mais que seqüelas emocionais.
Deixei-me ficar apenas ali, sentada no sofá, observando pela janela, o seu delicado balé.
Surpreendeu-me a ousadia de algumas delas, aproximaram-se tanto, que cheguei mesmo a ver suas minúsculas formas, através da transparência do vidro.
No dia seguinte, encontrei sob a entrada, geléia de flores e frutas, cujo aroma invadiu todos os aposentos. A casa inteira exalando um perfume suave e delicioso de primavera.
De novo percebi uma ligeira mudança em meu marido. Que dessa vez perguntou como eu estava e olhou os hematomas em minhas pernas e braços, quase que com um indiscutível horror.
***
As espero com angústia. A geléia acabou e Roberto voltou a ser o que era. Ontem derrubou toda a comida no chão, por achar que eu queimara o feijão. Depois saiu e até agora não voltou. Temo pelo seu retorno. Certa de que a bebida fará com que ele termine o que não começou ontem.
Adormeço de olhar fixo no quintal e, no entanto, não vejo nenhum daquele tranqüilizante brilho.
***
Meu corpo dói. Voltei hoje do hospital. Um braço e uma costela fraturados. A assistente social oferecendo ajuda. Como se eu pudesse...
Neguei que tivesse sido Roberto. Cai da escada, afirmei. Ninguém acreditou. E como poderiam? Nem que eu fosse a pessoa mais estúpida do mundo, conseguiria cair tanto da escada, como afirmo para os médicos, todas as vezes que dou entrada no hospital.
No quintal elas dançam e em volta da janela, piscam, como se me chamassem. Roberto ronca ao meu lado. Fico imóvel, apenas olhando-as. Não quero acordá-lo. Tenho medo do que ele irá fazer caso as veja. Talvez corte as árvores do quintal.
Devagar e silenciosamente levanto da cama. Prendo a respiração, prestando atenção nele. Mas está tão alcoolizado que dificilmente acordará.
Meio capengando, caminho até a sala, e dessa vez abro as janelas. Em segundos, tudo está coberto de luz. Elas rodopiam a minha volta, roçando suas delicadas asas em minha face.
Uma delas para a minha frente e eu consigo enxergar seus olhos. Percebo surpresa que ela chora, lágrimas miúdas escorrendo em sua delicada tez.
Ela toca em meu gesso, acaricia meus hematomas. A delicadeza de seu gesto me emociona. Choro silenciosamente enquanto elas valsam ao meu redor.
Já está amanhecendo quando partem. Adormeço no sofá da sala. E quando acordo com o sacudir bruto de meu marido, percebo assustada que dessa vez não houve presentes.
***
Perdi a esperança de vê-las novamente. A última vez que as vi, onde bailei com elas na sala soa hoje como uma despedida.
Espero ansiosa a noite chegar, sentada na varanda. Mas nada acontece. Apenas a vida com Roberto piorou. Desconfio de que ele está com uma amante. Suas roupas exalam um desagradável odor de álcool e perfume barato. Mas o que poderia significar uma trégua, na verdade, só complicou mais minha vida. As noites em que a tal o aborrece ou não está disponível, se transforma no meu inferno na terra. Estupros e surras quase que semanais.
A assistente social andou por aqui também. Deu-me um monte de panfletos com depoimentos de outras vitima. Vítimas? Será que sou uma também? Estou confusa. Quis destruir os panfletos depois que ela se foi, mas não tive coragem. Apenas escondi bem. Deus sabe o que Roberto faria se os encontrasse...
Sinto muita a falta delas...
***
Elas voltaram! Estava terminando de colocar o jantar para Roberto, quando percebo um suave brilho ao lado da laranjeira. Tento disfarçar a minha ansiedade, enquanto jantamos. Evito até mesmo olhar para a janela, pois sei que ele me observa atentamente.
Torço para que ele termine logo e saia, deixando-me a sós com minhas companheiras luminosas.
Ele as viu! Achei que tinha disfarçado, mas ele percebeu quando olhei em direção a janela.
Acompanho seus passos firmes em direção a porta, com o coração batendo feito louco. Digo que são apenas vaga-lumes, mas ele não me ouve.
Abre a porta da frente e não consegue reprimir uma exclamação de horror.
É tão lindo! Um espetáculo de luz e cores. Nunca foram tantas. São milhares, é como se de repente todo o horizonte fosse composto de pequenos pontos luminosos.
Elas estão por toda parte. Sobre as árvores, a grama e o carro. Em todos os pontos da varanda.
Estou tão extasiada com a beleza disso tudo que só percebo a ira de Roberto tarde demais. Ele as pisa, bate-lhes com o casaco. Vejo-as tombando inertes no chão.  Grito-lhe que pare. Mas ele me ignora. Seguro suas mãos, tentando imobilizá-lo, sou empurrada bruscamente e caio, tropeçando nos degraus da escada. Minha cabeça batendo no chão de cimento.
Sinto a dor me preenchendo a alma. A vista turva ainda o percebe em seu ensandecido massacre.
Então um silêncio aterrador brota de todos os lados. Até mesmo Roberto silencia. As criaturas de luz, que antes estavam dispersas, desordenadas, agora se unem em uma estranha massa compacta.
Tento me erguer e percebo o quão ferida estou ao escorregar em um líquido viscoso, que aterrorizada, sinto ser meu próprio sangue.
Ele ainda pisa com fúria nos corpos sob o chão e não percebe a nuvem de luz que se forma. Vejo que ela avança sobre ele, tento avisá-lo, mas a voz morre em minha garganta. Estupidamente silenciosa, vejo-o desaparecer envolto em luz. Desmaio.
***
Termino de colocar o último presente no jardim. Preparei doce e bolos, espelhos, perfumes e maquiagens. Tudo que minhas pequenas amigas adoram.
Agora elas vêem todos as noites, mas essa é especial. Roberto foi dado oficialmente como desaparecido e embora o delegado local acredite que eu o matei, não tem como provar.
Sem Roberto, faço doces e tortas para vender na cidade, todas incrementadas com ingredientes trazidos pelas pequeninas. Vendem tanto, que já tentaram me convencer a expandir. Para quê? Sou feliz com o que tenho e anseio apenas pela noite, que é quando as fadas surgem.

10 comentários:

.Intense. disse...

Fiquei entre o horror e o encanto - quase mesclados, e ainda mais confundidos por um arrepio absoluto pelo corpo. Quase chorei qdo terminei (mas é que chorar no trabalho é uó!).


Torcer pra que existam muitas fadas lá foram, em número suficiente pra levar esperanã - e muitos presentes - pra quem precisar. Nessa ou em outra ocasião.

;)


(Saudades!)
=*

.Intense. disse...

Fui a primeira? Primeiraaaaaaaaaaaaaaaa hauhauhauhauhauha


o/

Patrícia Lerbarch disse...

Lindo! Sua sensibilidade me encanta. Parabéns!

Isabella Verdolin disse...

Acho que esse foi um dos textos mais bonitos que li aqui no seu blog. Emocionante, sensível e incrivelmente real.

Unknown disse...

Paty,

Lindo texto sobre um tema tão delicado e que causa tanto horror a nós mulheres.
Se a narração fosse nua e crua causaria mal estar em quem lê, o seu texto emociona... ;)

Beijos

Luci disse...

perfeito encatamento, Patricia!!!
adorei.
bjs

Matheus Farizatto disse...

Nossa! Quase rolei mais rápido para ver o final logo de tão aflito!

Esse cara foi um #$%&*(&¨&¨%$¨#!!!

BOAAA!
bjos

Henrique Rodrigues disse...

Muito bom!
Gostei demais!

Rogeria disse...

Nossa, Pat!!! Que sensível! Você conseguiu suavizar de forma incrível a violência que ronda o dia-a-dia de muitas mulheres. Obrigada por me mandar. Bjs!!!

Rogeria disse...

Nossa, Pat!!! Que sensível! Você conseguiu suavizar de forma incrível a violência que ronda o dia-a-dia de muitas mulheres. Obrigada por me mandar. Bjs!!!