Essa obsessão por comemorar natal dia 24 e dia 25 me
confunde. Natal é dia 25, catzo! Réveillon que tem essa coisa de 31 e 1º, ambos
coexistem como uma única coisa, dias em que você tem desculpa para começar a
beber assim que amanhece. No dia 31 se despedindo de toda a desgraceira do ano
anterior, no 1º, para afogar toda o medo
da desgraceira que vem pela frente.
Mas, o Natal não. Comemora-se o nascimento de Cristo dia 25! Ninguém comemora aniversário a partir
do dia anterior. Ok, tem gente que comemora, mas nem vou considerar.
Mas, então, a fatídica ceia da virada trás a família
dividida entre os exaustos, que.passaram
o dia inteiro com a barriga encostada no fogão, fazendo comida para um batalhão
e os famintos, os cretinos que pararam de comer às 9 da manhã para guardar a
barriga pro peru do Ramiro. Por que o Ramiro, gente, o Ramiro faz um peru
divino!
A ceia da madrugada tem todo um quê emocional.
Depois da oração da prima Teteia, onde cada grão de arroz é
agraciado pela bênção divina, a turba se empanturra e depois se espalham pelos
cômodos, as crianças atazanando os.cachorros, os aborrecentes postando selfies
com dizeres de infelicidade. Os adultos compartilham lembranças, manuseando
fotos antigas com dedos lambuzados de calda de pudim de leite.
Se ai, nesse momento se encerrasse o ato, a vida familiar
seguiria na confortável hipocrisia de todos os dias. Mas, tem o efetivo dia do
Natal. E é ai que o tudo desanda.
Entre as 10h da manhã, quando todos acordam, por bem ou pelo
tilintar dos garfos e copos colocados à mesa pelos anfitriões insones e as 14h,
onde começam a servir o almoço, os ressentimentos fermentam e se apuram,
hidratados por cervejas mornas e vinhos azedos.
A verdade é que às 14h ninguém mais suporta o filho da
Doralice, moleque birrento que chora de cinco em cinco minutos, quando não está
batendo nas crianças menores.
.
Ninguém suporta mais a Doralice, loira, magra e que passa o
tempo todo discorrendo sobre como o pentelho do filho é inteligente e ganhou prêmio
de soletração do colégio. Principalmente porquê ela manda o moleque soletrar
inconstitucionalissimamente toda vez!
Há o revirar de olhos também para a Lidinha, terceira esposa
do primo Zeca, que faz cara de nojo para tudo que é oferecido e só come a
comida de passarinho que trouxe em mais de uma dúzia de potinhos de vidro, porquê só come comida orgânica, é vegana e
insiste em ensinar ao Caique, uma receita de danoninho natural feito com queijo
caseiro e morangos cultivados na Serra, no sétimo dia do solstício de inverno
por irmãs carmelitas que fizeram voto de silêncio. Sob os olhares raivosos de
Renata, esposa de Caique, que em vingança, abre um pacote de salgadinhos
carregado de sódio e gordura monossaturada e dá escondida para o filho mais
novo de Lidinha.
Quando todos sentam à mesa há um rancor não contido em cada
um dos presentes, a maioria já trocando as pernas. A tensão, como uma fina película,
cujo menor movimento vai romper. Os olhares se cruzam junto às travessas
fumegantes.
O conflito é eminente, por isso pouco falam, o bater dos
talheres é o som ambiente, ninguém quer
ser a gota que vai transbordar o copo. Só querem comer, encerrar aquilo e
voltar no ano seguinte.
E é nesse clima que João, o filho pentelho de Doralice,
exclama, com a boca cheia de farofa:
- Olha, mãe, o Neco
me ensinou a soletrar terraplanista - t-e-r-r-a...
Um silêncio profundo invade a sala. Quebrado pelo resmungar alto de Agenor, pai de
João e esposo de uma estupefata Doralice:
-Tinha que ser o Neco
a ensinar essa merda! É isso que está aprendendo no seu colégio caro e de
renome internacional? Que a terra é plana?
Andrade suspende a garfada no ar e aponta ameaçadoramente a
coxa de peru em direção a Agenor.
- Melhor aprender isso que ser doutrinado por aqueles
comunistas de merda do tal coleginho federal que seu filho estuda!
Um burburinho começa na mesa. Frases soltas ditas com a
cabeça baixa, quase como se falassem para si mesma. Mas, uma se sobrepõe as
outras.
- Pelo menos a filha não é sapatão... - murmura indignada
Carminha, mãe da Silvia, adolescente com fone de ouvido completamente alheia a
todos ali.
- E quem tem filha sapatão aqui? - a prima Teteia veste a
carapuça.
- Ah, vai dizer que você não sabe sobre a Carol? Todo mundo
sabe que sua filhinha cola velcro! -
Andrade se mete, ainda sacudindo a coxa.
Os olhares se dirigem
à Carol. A morena, que lutava para pegar um pedaço do peito de peru, levanta-se,
ainda com a faca de destrinchar peru na mão. Os parentes próximos se afastam
disfarçadamente.
- O senhor descobriu isso quando, tio Andrade? No dia em que
fingiu não me ver lá naquele prédio na Barata Ribeiro em que subiu com a
prostituta ou quando tentou cantar minha namorada e ela mandou o senhor se
fuder?
- Prostituta? Barata Ribeiro? - Vera, esposa do Andrade, indaga,
chocada ao marido.
O burburinho agora já não é mais baixo. Todos falam ao mesmo
tempo, de um lado a outro da mesa revelações são desencavadas e ofensas são
trocadas.
- Seu petralha, defensor do kit gay!
- Fascista, filha da puta opressor!
- Pelo menos não tenho bandido de estimação!
- E a laranjada, ta boa?
- Vai pra Cuba!
- Lambe-botas de milico!
Os ânimos se exaltam e as ofensas proliferam. Ninguém
percebe a matriarca Zuleide, catando todo o bacon da farofa e colocando em um
prato.
Desde que a médica a proibira de comer bacon, todos da família
faziam vigilância severa. Tinha anos que ela não comia a gordurosa iguaria.
João senta-se ao lado da avó, assistindo a hecatombe familiar.
- Vó, foi a senhora que me ensinou soletrar terraplanista,
por que me mandou dizer que foi o Neco?
- Cala a boca, menino e come um pedaço de bacon! - A
matriarca responde. Enfiando um pedaço da carne suculenta e dourada na boca da criança.